Entro no voo da GOL, logo após os passageiros com “necessidades especiais”. Meu status de premium customer me coloca como prioridade de embarque e me aloca no assento 2C, dentro do espaço GOL Mais Conforto. Um privilégio suposto a tornar o meu bate e volta ao Rio de Janeiro menos estressante.
Logo ao entrar, percebo uma senhora, negra, na faixa dos seus 40 anos, sentada no assento ao lado do meu, do outro lado do corredor. A senhora do 2D me chama a atenção por estar com seus olhos mareados, além da sua enorme cabeleira trançada em um coque sobre a cabeça que lembra literalmente uma “juba”. Vestida ainda de preto – vestido e sapatos. Algo não parecia bem. Mantenho a minha discrição e, apesar de umas olhadas eventuais, procuro não perguntar nada. Ela me passou uma impressão que o meu consciente ou inconsciente traduziu como “carência”, “medo” ou algum sintoma que na minha cabeça mescla estranhamente a sua condição de minoria – negra, mulher – com a de uma alma abalada por algum acontecimento grave.
Enquanto escrevo essa crônica, passam por mim no corredor dois passageiros, uma mulher e um homem, também negros, vestidos em trajes quase folclóricos. Ela toda enfeitada de miçangas coloridas e um vestido estampado, ele em um traje meio africano, quase um terno, em algo que parece um linho cru, com detalhes em marrom na lapela. No bolso, um objeto passa roçando no meu braço. Acho curioso, mas não consigo ver exatamente do que se tratava. Imagino ser uma imagem de um deus do candomblé esculpido em madeira. A mim, pareceu bonito e combinando com a elegância exótica do senhor.
Quem será a minha vizinha de assento? Conectada ao extremo, ela começa a perder um “ar” de pobrezinha ao não deixar de se conectar via internet por todo o processo de decolagem da aeronave. Fico a ponto de chamar a atenção dela para o fato de não ser permitido manter os celulares conectados na decolagem. Penso ainda em chamar a comissária. Mas rapidamente me vem a cena: um executivo, branco, privilegiado (parte da supremacia branca capitalista) censurando uma mulher, negra, e ainda por cima tristonha e com cara de vítima. Não, melhor pensar que na verdade a regra de segurança é um resquício de tecnologias obsoletas ou até mesmo uma censura à óbvia indesejada transformação de uma aeronave em voo em uma babel de pessoas falando ao celular.
Finalmente, o sinal acaba e ela volta a adotar a postura consternada. Apoia a cabeça na mochila da marca que está no seu colo e suspira. Recebe um clássico tapinha nas costas da sua companheira de assento do outro lado na janela. A moça da janela também é imediatamente estereotipada pelo meu consciente – ou será mesmo o inconsciente? – como uma clássica colaboradora de alguma ONG. Branca, magra, elegante, com uns óculos pequenos bem fashion. Também superconectada, não larga o seu tablet e um livrinho de anotações.
São ligadas as duas? A senhora negra logo descobre a maravilha da tecnologia e a disponibilidade do serviço “GOL online” a bordo. Rapidamente se envolve no processo de compra de uma franquia de dados. Enquanto eu aqui escrevo, logo percebo ela de volta ao digitar rápido e “non stoppable” no seu WhatsApp pelo resto do voo. Olho para a vizinha e já vejo a vereadora Marielle em minha frente. De alguma forma, ao se conectar e teclar, a angústia, a fragilidade ou o temor dá lugar a uma postura assertiva, de alguém que está lidando com algo importante. Certamente mais importante do que a minha crônica “ético-econômica” – assim adjetivada pelo meu melhor leitor, o sobrinho João. Agora é ela quem exerce a supremacia, a poderosa ativista, lidando com algo que pode certamente impactar a vida de milhares de pessoas. A defensora implacável das minorias independente da segurança dos passageiros que com ela compartilham o voo.
Como o uso do serviço de internet a bordo não se encaixa exatamente nos valores corporativos da companhia que me paga a passagem, procuro me divertir de forma old fashion: escrevendo no bom e velho Word for Windows em versão tradicional e que não requer conexão. Agora sou eu o limitado pelos interesses imediatos por lucro do capitalismo. Afinal, por mais importante que seja a minha função e mais grave que possa ser a questão, não há nada que não possa esperar o pouso no Rio de Janeiro.
Pensando em supremacia, me vem à cabeça o debate entre Gilmar Mendes e Roberto Barroso em plena sessão do Supremo Tribunal Federal do dia anterior. A brilhante colocação do ministro Barroso, definindo o colega como “uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia” ao mesmo tempo que nos representa a todos, ilustra de forma clara o ponto a que chegamos. No Supremo não há supremacia. Olho para a minha vizinha e fico com medo de que ela possa ser o meu Barroso. Estamos divididos e nossos valores já não me parecem mais embasar uma comunidade, mas sim uma terrível fragmentação de interesses, tentando se sobrepor um aos outros.
Entro no voo da GOL, logo após os passageiros com “necessidades especiais”. Meu status de premium customer me coloca como prioridade de embarque e me aloca no assento 2C, dentro do espaço GOL Mais Conforto. Um privilégio suposto a tornar o meu bate e volta ao Rio de Janeiro menos estressante.
Logo ao entrar, percebo uma senhora, negra, na faixa dos seus 40 anos, sentada no assento ao lado do meu, do outro lado do corredor. A senhora do 2D me chama a atenção por estar com seus olhos mareados, além da sua enorme cabeleira trançada em um coque sobre a cabeça que lembra literalmente uma “juba”. Vestida ainda de preto – vestido e sapatos. Algo não parecia bem. Mantenho a minha discrição e, apesar de umas olhadas eventuais, procuro não perguntar nada. Ela me passou uma impressão que o meu consciente ou inconsciente traduziu como “carência”, “medo” ou algum sintoma que na minha cabeça mescla estranhamente a sua condição de minoria – negra, mulher – com a de uma alma abalada por algum acontecimento grave.
Enquanto escrevo essa crônica, passam por mim no corredor dois passageiros, uma mulher e um homem, também negros, vestidos em trajes quase folclóricos. Ela toda enfeitada de miçangas coloridas e um vestido estampado, ele em um traje meio africano, quase um terno, em algo que parece um linho cru, com detalhes em marrom na lapela. No bolso, um objeto passa roçando no meu braço. Acho curioso, mas não consigo ver exatamente do que se tratava. Imagino ser uma imagem de um deus do candomblé esculpido em madeira. A mim, pareceu bonito e combinando com a elegância exótica do senhor.
Quem será a minha vizinha de assento? Conectada ao extremo, ela começa a perder um “ar” de pobrezinha ao não deixar de se conectar via internet por todo o processo de decolagem da aeronave. Fico a ponto de chamar a atenção dela para o fato de não ser permitido manter os celulares conectados na decolagem. Penso ainda em chamar a comissária. Mas rapidamente me vem a cena: um executivo, branco, privilegiado (parte da supremacia branca capitalista) censurando uma mulher, negra, e ainda por cima tristonha e com cara de vítima. Não, melhor pensar que na verdade a regra de segurança é um resquício de tecnologias obsoletas ou até mesmo uma censura à óbvia indesejada transformação de uma aeronave em voo em uma babel de pessoas falando ao celular.
Finalmente, o sinal acaba e ela volta a adotar a postura consternada. Apoia a cabeça na mochila da marca que está no seu colo e suspira. Recebe um clássico tapinha nas costas da sua companheira de assento do outro lado na janela. A moça da janela também é imediatamente estereotipada pelo meu consciente – ou será mesmo o inconsciente? – como uma clássica colaboradora de alguma ONG. Branca, magra, elegante, com uns óculos pequenos bem fashion. Também superconectada, não larga o seu tablet e um livrinho de anotações.
São ligadas as duas? A senhora negra logo descobre a maravilha da tecnologia e a disponibilidade do serviço “GOL online” a bordo. Rapidamente se envolve no processo de compra de uma franquia de dados. Enquanto eu aqui escrevo, logo percebo ela de volta ao digitar rápido e “non stoppable” no seu WhatsApp pelo resto do voo. Olho para a vizinha e já vejo a vereadora Marielle em minha frente. De alguma forma, ao se conectar e teclar, a angústia, a fragilidade ou o temor dá lugar a uma postura assertiva, de alguém que está lidando com algo importante. Certamente mais importante do que a minha crônica “ético-econômica” – assim adjetivada pelo meu melhor leitor, o sobrinho João. Agora é ela quem exerce a supremacia, a poderosa ativista, lidando com algo que pode certamente impactar a vida de milhares de pessoas. A defensora implacável das minorias independente da segurança dos passageiros que com ela compartilham o voo.
Como o uso do serviço de internet a bordo não se encaixa exatamente nos valores corporativos da companhia que me paga a passagem, procuro me divertir de forma old fashion: escrevendo no bom e velho Word for Windows em versão tradicional e que não requer conexão. Agora sou eu o limitado pelos interesses imediatos por lucro do capitalismo. Afinal, por mais importante que seja a minha função e mais grave que possa ser a questão, não há nada que não possa esperar o pouso no Rio de Janeiro.
Pensando em supremacia, me vem à cabeça o debate entre Gilmar Mendes e Roberto Barroso em plena sessão do Supremo Tribunal Federal do dia anterior. A brilhante colocação do ministro Barroso, definindo o colega como “uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia” ao mesmo tempo que nos representa a todos, ilustra de forma clara o ponto a que chegamos. No Supremo não há supremacia. Olho para a minha vizinha e fico com medo de que ela possa ser o meu Barroso. Estamos divididos e nossos valores já não me parecem mais embasar uma comunidade, mas sim uma terrível fragmentação de interesses, tentando se sobrepor um aos outros.