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Crônicas Brasileiras

Crônicas Brasileiras vol.1: Carnaval em Noronha

1/2/18

Embora existam evidências de visitantes anteriores, o arquipélago de Fernando de Noronha foi oficialmente “descoberto” pelo ilustre Américo Vespúcio, em 1503. Vespúcio teria dito “o paraíso é aqui” ao desembarcar, embora o tenha feito logo após o naufrágio da nave capitã da sua expedição, o que possivelmente transformaria qualquer rocha em um paraíso no seu ponto de vista naquele momento.

Durante séculos o arquipélago foi sucessivamente invadido e ocupado por ingleses, franceses e holandeses, virando, já no século XX, importante base militar de uso norte-americano na Segunda Guerra Mundial. Já foi capitania hereditária, território federal e agora é distrito do estado de Pernambuco. De local de convalescência para exploradores europeus cruzando o Atlântico, a destino de prisioneiros políticos, recentemente se tornou destino de celebridades e surfistas.

Confesso que, apesar de todas as expectativas, demorei um pouco mais que Vespúcio para ver o paraíso no arquipélago. Chegamos no meio da manhã sob uma chuvinha fina que já criava uma expectativa menos que perfeita para quem buscava uma semana de praias desertas nos trópicos. Logo ao desembarcarmos no acanhado aeroporto, a primeira tarefa era enfrentar a fila de pagamento da TPA, ou Taxa de Preservação Ambiental. Estranhamente havia uma fila grande para os que se planejaram e pagaram antecipadamente pelo site, e uma menor para os que o fariam na hora. Essa pequena “punição” pelo bom planejamento talvez já fosse uma pista de algumas das contradições e dualidades que encontraríamos na ilha.

Já na saída da sala de embarque, fomos identificados por uma mocinha simpática que indicou que a nossa pousada oferecia um translado gratuito e nos encaminhou para uma van com bagageiro onde seguimos com outros recém-chegados de pousada em pousada. Embora tenhamos pago entre passagem e pousadas bem mais que vários destinos internacionais, ainda estávamos no Brasil, e a estrada esburacada e as ruas enlameadas, embora não propriamente esperadas e longe de refletir o tal “paraíso”, não nos causaram propriamente susto. Contudo, já na terceira parada, após alguns turistas saltarem, a porta da van emperrou. Não abria de jeito algum. Pronto: estávamos trancados dentro de uma van em pleno paraíso. Após alguma espera, um dos turistas obteve sucesso naquilo que o motorista da van havia falhado sucessivamente, e desemperrou a porta. Mas nos informaram que uma nova van já estava a caminho. Com algum atraso chegamos à pousada Alto Mar. Sob uma garoa fina, as nossas acomodações não pareciam exatamente condizentes com o custo da acomodação (como reclamara uma amiga a quem chamamos para ir conosco: “as diárias da pousada são mais caras que um lindo apartamento ski in ski out, tipo Vieira Souto, em Val d’Isère”), e antevi o que ocorreria se o tempo permanecesse ruim durante nossa estadia.

Poderia falar longamente sobre as maravilhas deste paraíso tropical. Mas o leitor pode achar praticamente tudo o que precisa neste quesito em sites como “Viagem na viagem”, “TripAdvisor” e outros. O que me incita a escrever é mais específico e lida mais com uma certa crítica daquilo que, ao meu ver, transforma este pequeno arquipélago numa representação bem interessante das contradições do nosso país.

Cerca de 70% da ilha é um Parque Nacional, administrado pelo ICMBio. Os outros 30% são uma Área de Preservação Ambiental, administrada pelo Governo de Pernambuco.

Em minha primeira manhã dirigindo o buggy – um tanto desafiador de repente se ver sem a direção elétrica e o câmbio automático –, passamos soltando fumaça pelo ecoposto do ICMBio. Lá uma área bem cuidada ao longo da estrada indica “Ponto de Abastecimento de Carros Elétricos”. Fiquei intrigado com o fato de que o chamado “ecoposto” se localiza dentro da central de geração de energia elétrica da ilha, na verdade uma termoelétrica a diesel que ainda produz 90% da energia local.

Enquanto na APA se anda de buggies com seus velhos motores VW soltando fumaça por estradas esburacadas e enlameadas, logo na nossa primeira entrada no Parque, a caminho da Baía do Sancho, estacionamos o buggy em uma área toda pavimentada com tijolos produzidos a partir de plástico reciclado. A trilha até os mirantes e a escada pela qual se desce para a praia são feitas de passarelas também em plástico imitando um deque de madeira, que parece flutuar sobre a vegetação nativa. Os mirantes são incríveis e uma linda estagiária de uma das muitas autarquias ou ONGs nos recebe no mirante da Baía dos Golfinhos, onde ela nos explica que a ilha é um paraíso para os golfinhos rotadores.

As áreas cobertas pelo Parque Nacional têm visitas limitadas e horários específicos em que grupos de um número limitadíssimo de turistas pode visitar algumas das piscinas naturais. A belíssima piscina de Atalaia, por exemplo, só recebe grupos de, no máximo, 15 turistas durante a maré baixa. Os grupos só podem mergulhar por, no máximo, meia hora, e o cuidado vai ao ponto de se proibir o uso de protetor solar, pois, ao se dissolver na água, poderia comprometer a saúde dos corais que têm longa exposição ao sol direto ao longo da maré baixa. O lugar é deslumbrante e mergulha-se em águas rasas e cristalinas onde peixes de todos os tamanhos se juntam a filhotes de cação que se veem “presos” na piscina quando a maré baixa. Somos muito bem orientados pela equipe do ICMBio. Na hora do check-in do grupo imediatamente à nossa frente, o responsável fica preocupadíssimo ao constatar que o grupo pode ter descido com mais de 15 pessoas. Contudo, logo depois libera a descida de um funcionário da autarquia que teria vindo de Brasília para visitar o projeto. Mesmo depois que o nosso grupo é solicitado a deixar a piscina, já quase uma hora depois, o tal funcionário ainda estava por lá, parecendo muito mais um turista comum do que um pesquisador. Afinal, o tal espírito de corpo e privilégio não são exclusividade do Congresso Nacional e essa “praga” parece também atacar os ecologistas quando se transformam em burocratas do aparato estatal.

A ilha pratica preços “paulistanos”. Uma sentada no Bar do Meio ou no Cacimba Bistrô brinda o turista com preços e qualidade bastante alta. O perigo é gostar e ficar bebendo doses seguidas de moscow mule no entardecer ao som de uma bela banda tocando pot-pourris de carnaval. Isso também se reflete em serviços, muitos dos quais dão indicações de privilégios e novas “capitanias hereditárias”. O passeio de barco com direito a vista dos golfinhos é um oligopólio de duas ou três operadoras, assim como os passeios de mergulho. Como vocês podem imaginar, os preços não são exatamente de um livre mercado. Mesmo dentre as operadoras, existem privilégios e reservas de áreas, atribuídas a supostos diretos adquiridos que ocorriam antes da chegada do normatizador ICMBio.

Mas a semana passa e, mesmo com um pouco mais de chuvas que o esperado, ficamos completamente encantados com a ilha, suas praias, picos de surfe, e, principalmente, com nosso hostess na pousada. A verdade é que nunca fomos tão bem tratados como hóspedes, mesmo nos melhores cinco estrelas que possamos ter nos hospedados. Dentro da sua pequena reserva de mercado, os empreendedores turísticos sabem muito bem que, na era das avaliações online do TripAdvisor, não se sobrevive no longo prazo sem alguma diferenciação e qualidade.

Crônicas Brasileiras vol.1: Carnaval em Noronha

1/2/18
Crônica

Embora existam evidências de visitantes anteriores, o arquipélago de Fernando de Noronha foi oficialmente “descoberto” pelo ilustre Américo Vespúcio, em 1503. Vespúcio teria dito “o paraíso é aqui” ao desembarcar, embora o tenha feito logo após o naufrágio da nave capitã da sua expedição, o que possivelmente transformaria qualquer rocha em um paraíso no seu ponto de vista naquele momento.

Durante séculos o arquipélago foi sucessivamente invadido e ocupado por ingleses, franceses e holandeses, virando, já no século XX, importante base militar de uso norte-americano na Segunda Guerra Mundial. Já foi capitania hereditária, território federal e agora é distrito do estado de Pernambuco. De local de convalescência para exploradores europeus cruzando o Atlântico, a destino de prisioneiros políticos, recentemente se tornou destino de celebridades e surfistas.

Confesso que, apesar de todas as expectativas, demorei um pouco mais que Vespúcio para ver o paraíso no arquipélago. Chegamos no meio da manhã sob uma chuvinha fina que já criava uma expectativa menos que perfeita para quem buscava uma semana de praias desertas nos trópicos. Logo ao desembarcarmos no acanhado aeroporto, a primeira tarefa era enfrentar a fila de pagamento da TPA, ou Taxa de Preservação Ambiental. Estranhamente havia uma fila grande para os que se planejaram e pagaram antecipadamente pelo site, e uma menor para os que o fariam na hora. Essa pequena “punição” pelo bom planejamento talvez já fosse uma pista de algumas das contradições e dualidades que encontraríamos na ilha.

Já na saída da sala de embarque, fomos identificados por uma mocinha simpática que indicou que a nossa pousada oferecia um translado gratuito e nos encaminhou para uma van com bagageiro onde seguimos com outros recém-chegados de pousada em pousada. Embora tenhamos pago entre passagem e pousadas bem mais que vários destinos internacionais, ainda estávamos no Brasil, e a estrada esburacada e as ruas enlameadas, embora não propriamente esperadas e longe de refletir o tal “paraíso”, não nos causaram propriamente susto. Contudo, já na terceira parada, após alguns turistas saltarem, a porta da van emperrou. Não abria de jeito algum. Pronto: estávamos trancados dentro de uma van em pleno paraíso. Após alguma espera, um dos turistas obteve sucesso naquilo que o motorista da van havia falhado sucessivamente, e desemperrou a porta. Mas nos informaram que uma nova van já estava a caminho. Com algum atraso chegamos à pousada Alto Mar. Sob uma garoa fina, as nossas acomodações não pareciam exatamente condizentes com o custo da acomodação (como reclamara uma amiga a quem chamamos para ir conosco: “as diárias da pousada são mais caras que um lindo apartamento ski in ski out, tipo Vieira Souto, em Val d’Isère”), e antevi o que ocorreria se o tempo permanecesse ruim durante nossa estadia.

Poderia falar longamente sobre as maravilhas deste paraíso tropical. Mas o leitor pode achar praticamente tudo o que precisa neste quesito em sites como “Viagem na viagem”, “TripAdvisor” e outros. O que me incita a escrever é mais específico e lida mais com uma certa crítica daquilo que, ao meu ver, transforma este pequeno arquipélago numa representação bem interessante das contradições do nosso país.

Cerca de 70% da ilha é um Parque Nacional, administrado pelo ICMBio. Os outros 30% são uma Área de Preservação Ambiental, administrada pelo Governo de Pernambuco.

Em minha primeira manhã dirigindo o buggy – um tanto desafiador de repente se ver sem a direção elétrica e o câmbio automático –, passamos soltando fumaça pelo ecoposto do ICMBio. Lá uma área bem cuidada ao longo da estrada indica “Ponto de Abastecimento de Carros Elétricos”. Fiquei intrigado com o fato de que o chamado “ecoposto” se localiza dentro da central de geração de energia elétrica da ilha, na verdade uma termoelétrica a diesel que ainda produz 90% da energia local.

Enquanto na APA se anda de buggies com seus velhos motores VW soltando fumaça por estradas esburacadas e enlameadas, logo na nossa primeira entrada no Parque, a caminho da Baía do Sancho, estacionamos o buggy em uma área toda pavimentada com tijolos produzidos a partir de plástico reciclado. A trilha até os mirantes e a escada pela qual se desce para a praia são feitas de passarelas também em plástico imitando um deque de madeira, que parece flutuar sobre a vegetação nativa. Os mirantes são incríveis e uma linda estagiária de uma das muitas autarquias ou ONGs nos recebe no mirante da Baía dos Golfinhos, onde ela nos explica que a ilha é um paraíso para os golfinhos rotadores.

As áreas cobertas pelo Parque Nacional têm visitas limitadas e horários específicos em que grupos de um número limitadíssimo de turistas pode visitar algumas das piscinas naturais. A belíssima piscina de Atalaia, por exemplo, só recebe grupos de, no máximo, 15 turistas durante a maré baixa. Os grupos só podem mergulhar por, no máximo, meia hora, e o cuidado vai ao ponto de se proibir o uso de protetor solar, pois, ao se dissolver na água, poderia comprometer a saúde dos corais que têm longa exposição ao sol direto ao longo da maré baixa. O lugar é deslumbrante e mergulha-se em águas rasas e cristalinas onde peixes de todos os tamanhos se juntam a filhotes de cação que se veem “presos” na piscina quando a maré baixa. Somos muito bem orientados pela equipe do ICMBio. Na hora do check-in do grupo imediatamente à nossa frente, o responsável fica preocupadíssimo ao constatar que o grupo pode ter descido com mais de 15 pessoas. Contudo, logo depois libera a descida de um funcionário da autarquia que teria vindo de Brasília para visitar o projeto. Mesmo depois que o nosso grupo é solicitado a deixar a piscina, já quase uma hora depois, o tal funcionário ainda estava por lá, parecendo muito mais um turista comum do que um pesquisador. Afinal, o tal espírito de corpo e privilégio não são exclusividade do Congresso Nacional e essa “praga” parece também atacar os ecologistas quando se transformam em burocratas do aparato estatal.

A ilha pratica preços “paulistanos”. Uma sentada no Bar do Meio ou no Cacimba Bistrô brinda o turista com preços e qualidade bastante alta. O perigo é gostar e ficar bebendo doses seguidas de moscow mule no entardecer ao som de uma bela banda tocando pot-pourris de carnaval. Isso também se reflete em serviços, muitos dos quais dão indicações de privilégios e novas “capitanias hereditárias”. O passeio de barco com direito a vista dos golfinhos é um oligopólio de duas ou três operadoras, assim como os passeios de mergulho. Como vocês podem imaginar, os preços não são exatamente de um livre mercado. Mesmo dentre as operadoras, existem privilégios e reservas de áreas, atribuídas a supostos diretos adquiridos que ocorriam antes da chegada do normatizador ICMBio.

Mas a semana passa e, mesmo com um pouco mais de chuvas que o esperado, ficamos completamente encantados com a ilha, suas praias, picos de surfe, e, principalmente, com nosso hostess na pousada. A verdade é que nunca fomos tão bem tratados como hóspedes, mesmo nos melhores cinco estrelas que possamos ter nos hospedados. Dentro da sua pequena reserva de mercado, os empreendedores turísticos sabem muito bem que, na era das avaliações online do TripAdvisor, não se sobrevive no longo prazo sem alguma diferenciação e qualidade.