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Crônicas Americanas

Crônicas Americanas vol.1: A primeira dama do ketchup

27/5/04

Nesta semana, Boston está vivendo em função da Convenção Nacional do Partido Democrata. Tem sido muito interessante observar de perto esta demonstração viva da democracia norte-americana. Apesar de tudo e, sobretudo, apesar de Bush, a democracia aqui, com todos os seus problemas e “engessamentos”, ainda é um espetáculo, que fala muito sobre a natureza deste país.

Ontem foi particularmente interessante ver alguns dos discursos. A estratégia dos Dems nesta convenção foi mostrar que o candidato deles é um líder, um otimista, que não apenas vai trazer de volta os bons tempos da era Clinton, como também ser um perfeito “commander in chief”. Portanto eles têm evitado bater diretamente em Bush, optando mais por enfatizar as qualidades de Kerry. Mas não dá para evitar alguns como Ted Kennedy e Howard Dean, que pintaram e bordaram com Bush e com a guerra no Iraque. Como eles falam aqui, estes dois serviram à “red meat”.

Howard Dean é um sujeito meio radical, que era favorito para ser o candidato até fevereiro. Andou pisando na bola e não decolou. Na verdade, afundou de vez depois que soltou um berro, um urro mesmo, no seu discurso de derrota após a primeira primária. Ele exemplifica o “engessamento” a que me referi no início, e que visa sempre ter figuras ponderadas, centristas na posição de candidatos.

Todo o sistema político aqui funciona para isso. Parece que Bush, com seu radicalismo direitista, fundamentalista e dogmático, conseguiu furar o esquema. Tem um filme interessante que toca neste ponto, chamado The Manchurian Candidate, com Denzel Washington (disponível em: https://www.imdb.com/title/tt0368008/). Não vi ainda, mas li uma crítica, e parece que a história toda consiste na eleição de um presidente norte-americano que é, na verdade, um espião chinês. Posando de anticomunista radical, assume o poder para favorecer os chineses. Um articulista do New York Times fez uma analogia, e chamou o Bush de “The Arabian Candidate”, já que, com todas as suas atrapalhadas, ele está mesmo é ajudando Bin Laden.

Mas voltando à convenção, com o passar do tempo esta foi ficando interessante. Primeiramente, eles trouxeram um jovem candidato ao Senado pela estado de Illinois, chamado Barack Obama. Ele é a típica manifestação do “american dream” de que eles tanto gostam aqui, e que está se tornando cada vez mais um pesadelo. Negro, filho de imigrantes africanos, neto de um cozinheiro que trabalhava como doméstico para os ingleses no Quênia, Obama se graduou em Direito em Harvard, sendo o primeiro negro a ser o editor chefe da Harvard Law Review, uma publicação dos estudantes, na qual só são incluídos aqueles alunos que realmente se destacam. Após se graduar, fez carreira, fortuna e fama de excelente advogado em Nova York. Recentemente, mudou-se para Chicago e começou na política. Fez um discurso quase perfeito, e eu até me emocionei. Só cometeu um erro: quando se referiu ao fato de que uma história como a dele só aconteceria aqui nos States. Parece que alguém precisa apresentar o Lula a ele.

Depois veio o melhor da festa, a Tereza Heinz Kerry. A senhora do Kerry é também viúva de um senador republicano, que era o herdeiro da Heinz, aquela marca de ketchup. Portuguesa, nascida em Moçambique, Tereza Kerry fala cinco línguas, todas elas aparentemente ferinas. Na véspera do seu discurso, ela mandou uma repórter de um jornal de direita “shove it”, o que se traduziria mais ou menos como “enfia no c...”. Ela é ainda uma bilionária, que administra a fundação Heinz, e é considerada uma das maiores filantropas dos States. É uma figura polêmica e, claro, extremamente interessante (para aqueles de vocês que ainda não perceberam, polêmica e interessante são como sinônimos no meu dicionário). Ela deve parecer como uma mulher entrona demais para muitos machos, e uma ameaça para muitas mulheres. Roberta, minha esposa, por exemplo, não consegue ter uma empatia muito grande por ela. Meu lado de psicanalista não pode fazer outra coisa a não ser especular acerca de um certo receio que ambos os sexos parecem ter de uma mulher forte. Não é à toa que chamamos normalmente de “mulher macho”, como que depreciando o que seria uma qualidade, e implicitamente fazendo uma analogia sexual.

Mas a senhora Kerry fez também um senhor discurso. Eu, como brasileiro saudoso e nacionalista, adorei a passagem em que ela, falando nas cinco línguas que domina, após saudar os franceses (até mesmo os franceses), italianos e espanhóis, saudou a “grande família portuguesa e também brasileira”. Meio demagógica, mas aplaudi de pé. Depois contou toda a sua história, desde seus tempos de estudante na África do Sul, nas marchas universitárias anti-apartheid, até a sua militância ecológica, que a levou ao Rio de Janeiro, na conferência do meio ambiente, onde conheceu o seu atual marido. Essencialmente o que ela passou foi a ideia de que a sabedoria pode andar de mãos dadas com a força, dando uma cutucada em Bush de novo, que é visto como um líder forte, mais “stubborn” ou “cabeça dura”.

Em suma, foi uma festa de democracia e de otimismo, de um povo que tem como grande qualidade o otimismo e a autoestima. Outro dia vi Lula convocando os brasileiros a terem mais autoestima. Precisa mesmo, mas deve começar com o governo dele, que não pode continuar se rendendo apenas às formulas já testadas de gerenciamento da economia. Senão ainda acabo preferindo FHC. Mas isso é assunto para uma outra crônica.

Crônicas Americanas vol.1: A primeira dama do ketchup

27/5/04
Crônica

Nesta semana, Boston está vivendo em função da Convenção Nacional do Partido Democrata. Tem sido muito interessante observar de perto esta demonstração viva da democracia norte-americana. Apesar de tudo e, sobretudo, apesar de Bush, a democracia aqui, com todos os seus problemas e “engessamentos”, ainda é um espetáculo, que fala muito sobre a natureza deste país.

Ontem foi particularmente interessante ver alguns dos discursos. A estratégia dos Dems nesta convenção foi mostrar que o candidato deles é um líder, um otimista, que não apenas vai trazer de volta os bons tempos da era Clinton, como também ser um perfeito “commander in chief”. Portanto eles têm evitado bater diretamente em Bush, optando mais por enfatizar as qualidades de Kerry. Mas não dá para evitar alguns como Ted Kennedy e Howard Dean, que pintaram e bordaram com Bush e com a guerra no Iraque. Como eles falam aqui, estes dois serviram à “red meat”.

Howard Dean é um sujeito meio radical, que era favorito para ser o candidato até fevereiro. Andou pisando na bola e não decolou. Na verdade, afundou de vez depois que soltou um berro, um urro mesmo, no seu discurso de derrota após a primeira primária. Ele exemplifica o “engessamento” a que me referi no início, e que visa sempre ter figuras ponderadas, centristas na posição de candidatos.

Todo o sistema político aqui funciona para isso. Parece que Bush, com seu radicalismo direitista, fundamentalista e dogmático, conseguiu furar o esquema. Tem um filme interessante que toca neste ponto, chamado The Manchurian Candidate, com Denzel Washington (disponível em: https://www.imdb.com/title/tt0368008/). Não vi ainda, mas li uma crítica, e parece que a história toda consiste na eleição de um presidente norte-americano que é, na verdade, um espião chinês. Posando de anticomunista radical, assume o poder para favorecer os chineses. Um articulista do New York Times fez uma analogia, e chamou o Bush de “The Arabian Candidate”, já que, com todas as suas atrapalhadas, ele está mesmo é ajudando Bin Laden.

Mas voltando à convenção, com o passar do tempo esta foi ficando interessante. Primeiramente, eles trouxeram um jovem candidato ao Senado pela estado de Illinois, chamado Barack Obama. Ele é a típica manifestação do “american dream” de que eles tanto gostam aqui, e que está se tornando cada vez mais um pesadelo. Negro, filho de imigrantes africanos, neto de um cozinheiro que trabalhava como doméstico para os ingleses no Quênia, Obama se graduou em Direito em Harvard, sendo o primeiro negro a ser o editor chefe da Harvard Law Review, uma publicação dos estudantes, na qual só são incluídos aqueles alunos que realmente se destacam. Após se graduar, fez carreira, fortuna e fama de excelente advogado em Nova York. Recentemente, mudou-se para Chicago e começou na política. Fez um discurso quase perfeito, e eu até me emocionei. Só cometeu um erro: quando se referiu ao fato de que uma história como a dele só aconteceria aqui nos States. Parece que alguém precisa apresentar o Lula a ele.

Depois veio o melhor da festa, a Tereza Heinz Kerry. A senhora do Kerry é também viúva de um senador republicano, que era o herdeiro da Heinz, aquela marca de ketchup. Portuguesa, nascida em Moçambique, Tereza Kerry fala cinco línguas, todas elas aparentemente ferinas. Na véspera do seu discurso, ela mandou uma repórter de um jornal de direita “shove it”, o que se traduziria mais ou menos como “enfia no c...”. Ela é ainda uma bilionária, que administra a fundação Heinz, e é considerada uma das maiores filantropas dos States. É uma figura polêmica e, claro, extremamente interessante (para aqueles de vocês que ainda não perceberam, polêmica e interessante são como sinônimos no meu dicionário). Ela deve parecer como uma mulher entrona demais para muitos machos, e uma ameaça para muitas mulheres. Roberta, minha esposa, por exemplo, não consegue ter uma empatia muito grande por ela. Meu lado de psicanalista não pode fazer outra coisa a não ser especular acerca de um certo receio que ambos os sexos parecem ter de uma mulher forte. Não é à toa que chamamos normalmente de “mulher macho”, como que depreciando o que seria uma qualidade, e implicitamente fazendo uma analogia sexual.

Mas a senhora Kerry fez também um senhor discurso. Eu, como brasileiro saudoso e nacionalista, adorei a passagem em que ela, falando nas cinco línguas que domina, após saudar os franceses (até mesmo os franceses), italianos e espanhóis, saudou a “grande família portuguesa e também brasileira”. Meio demagógica, mas aplaudi de pé. Depois contou toda a sua história, desde seus tempos de estudante na África do Sul, nas marchas universitárias anti-apartheid, até a sua militância ecológica, que a levou ao Rio de Janeiro, na conferência do meio ambiente, onde conheceu o seu atual marido. Essencialmente o que ela passou foi a ideia de que a sabedoria pode andar de mãos dadas com a força, dando uma cutucada em Bush de novo, que é visto como um líder forte, mais “stubborn” ou “cabeça dura”.

Em suma, foi uma festa de democracia e de otimismo, de um povo que tem como grande qualidade o otimismo e a autoestima. Outro dia vi Lula convocando os brasileiros a terem mais autoestima. Precisa mesmo, mas deve começar com o governo dele, que não pode continuar se rendendo apenas às formulas já testadas de gerenciamento da economia. Senão ainda acabo preferindo FHC. Mas isso é assunto para uma outra crônica.